20120601

"Gráffias"

Eu desço a escada do avião da empresa de baixo custo (12 euros por este trecho) e rumo aeroporto adentro, erro o caminho e vou para o saguão errado, finalmente me encontrando, checo o câmbio - muito caro - e o guichê de informações. É muito simples andar pelo centro, tudo fica por lá, diz a atendente com um sorriso. Ela fala claramente e eu não tenho dificuldades. Na parada do ônibus expresso, um negão de terno fica confuso com os sinais, pergunto em inglês aonde ele quer ir mas ele, um marroquino, só fala francês. Faço o melhor que posso Où voulez-vous aller? ele responde ainda confuso Avenida América. Encontro o número do ônibus que vai pra lá e aponto C'est ça. Ele agradece e senta calado.  Meu ônibus vem e eu parto observando tudo ao meu redor, nessa altura da viagem fico feliz de mais um ônibus ter um letreiro digital, já que os alto-falantes são no mínimo terríveis. Nem se fosse em português eu entenderia.

Eu desço na Plaza de Cibeles e sigo o mapa da moça do aeroporto. É uma caminhada relativamente curta, ela disse, até chegar a Puerta del Sol é 1,5 quilômetro. E eu aproveito cada metro. Os prédios não são estranhos, gigantes versões dos prédios coloniais de Manaus, muito mais majestosos e em sua maioria de um bege empedrado. Passo um museu, uma pixação, prostitutas em vielas, lojas. Quando chego a Puerta, uma infinidade de pessoas, muitas muitas pessoas sentadas nas fontes, apoiadas nas paredes da artística entrada do metrô, artistas de rua, tão irritantes aqui quanto em Veneza, mas eu só saberia disso em dois dias e meio. Continuo seguindo o mapa para o meu hostel. Naquelas redondezas, disse-me a moça, houve um assassinato de alguém importante e depois fizeram um filme sobre isso. Me perco entre as ruas pavimentadas de pedras polidas por solas de sapatos ao longo de centenas de anos, encontro a tal rua, estreita, deserta, assustadora. Há uma praça em uma colina cheia de silhuetas fumando e falando alto. Fico feliz de eles me ignorarem e alcançando o hostel me sinto em segurança. Mostro a reserva feita pela internet, o dono é um homenzarrão meio carrancudo mas gentil. Cartão aprovado, meu quarto é dividido com mais 11 pessoas, ele avisa. Depois de tudo explicado, agradeço e me sento. Já me acostumei com os calos nos pés mas aprendi a importante lição de deitar em uma cama macia por alguns minutos e deixar a poeira baixar. Dois norte-americanos entram, se apresentam, trocamos um conversa rápida. Tenho fome. Eles não querem sair pra jantar, uma garota entra no quarto e diz oi. É você a holandesa? Sou eu sim (a única mulher do quarto, os americanos me explicaram antes) Quer ir jantar comigo? Ela hesita por 2 segundos. "Sure!"

Sinceramente não sei aonde ir, deixo ela me guiar. Paramos em uma pracinha e enquanto trocamos apresentações básicas eu provo um presunto com pão e azeite que faz meu coração sorrir. Me lembrou a praça do Eldorado. Quando se vive muito em uma cidade só, é difícil não comparar com outros lugares e Manaus é mais do que os habitantes imaginam. Todo aquele glamour da borracha e aqueles prédios de famílias portuguesas no Largo São Sebastião tem um motivo. São tentativas de fazer gente que veio de muito muito longe se sentir mais próximo de casa. E esse hábito de comer na rua, sentado em uma praça, também não é nosso. Percebo isso enquanto ela me conta que ensina linguagem de sinais para crianças autistas surdas (?) e como o trabalho é difícil e longo. Como Amsterdan ainda está fria e como ela em um impulso tirou o fim-de-semana e foi para lá.

Eu conto sobre mim, sobre o Japão, sobre essa viagem, aonde eu vou, de onde vim, etc. E estamos em um bar típico agora, bebendo cerveja e comendo sanduiches com diferentes presuntos, choriços, salsichóns. Eu tenho dificuldade para explicar o que é um jábon em inglês e nossos amigos de mesa não falam inglês, cutucamos iPhones em busca de um significado. Eles desistem e dizem é carne, é bom. Eu conto pra ela e aqueles olhos azul-escuro riem. Ela me mostra suas pinturas, um hobby de horas vagas. Eu fico honestamente impressionado e peço que ela me mande por e-mail fotos. Nunca mandou.

Nossos novos amigos vão embora. Eles são mais jovens que eu e parecem bem mais velhos. Rumamos de volta ao hotel, mas ela anda muito rápido. Eu seguro sua mão e peço pra ela relaxar. Ela se esforça.

Isso tudo enquanto vendo uma cidade impressionantemente bonita, igrejas iluminadas, gente por toda parte. Pulsando jovialidade.

Franceses me acordam no meio da noite fazendo check-in. De manhã eu digo que eles fizeram um estardalhaço, eles se desculpam mas zombam de mim, eu sei. Eu posso entender isso até em koreano. Ela se comporta fria e indiferente, eu me sinto empurrado longe e decido continuar com a vida, afinal o tempo é curto e há tanto para se ver...E eu vejo tudo que eu posso, ando o dia inteiro. Visito um museu náutico onde um antigo mapa tem escrito um aviso no lugar aonde o Japão deveria estar "Aqui vive um terrível monstro marinho" down right Sir, down right! Eu rio sozinho.

Ainda é março, então o Jardim Botânico não tem flores. Me incomoda a sua indiferença, o que eu fiz de errado? Minhas lamúrias são interrompidas  por um senhor gritando pela polícia, suas coisas foram roubadas mas com sorte ele recuperou a carteira.

Quando eu passei pela praça onde um Cervantes de mármore observa Dom Quixote e Sancho Pança eu já tinha percebido. Eu me apaixonei. Em uma noite. Por olhos azuis. E um espírito artístico. E eu tinha meu coração partido, na manhã seguinte. É isso viver intensamente? Deve ser. Quem disse que o romance morreu?

A noite trocamos um oi, sigo em direção ao outro lado do rio, resolvo ir andando apesar dos 6 kilômetros de distância. Andar se tornou parte de mim, já não dói. Tento encontrar um clube de rock que vi na internet, sem sucesso, paro em um restaurante árabe e me deleito com um kebab e uma salada maravilhosos. Um acidente na praça próxima chama minha atenção por alguns momentos e resolvo voltar de metrô.

Perco meu tempo falando com um canadense exibido e alguns brasileiros que aparecem de repente, resolvo tomar banho mas a porta está travada. Chamo o atendente, o mesmo homenzarrão do check-in. Ele se surpreende com meus agradecimentos, sorri dizendo que não é nada. O Japão me educou melhor que minha mãe na arte de agradecer.

Eu escrevo uma pequena dedicatória no meu meio-lido livro coletânea de O. Henry. Eu iria me arrepender de ter dado esse livro mais tarde, mas não muito, só por que eu estava sem nada mais para ler. Eu deixo na cama dela e durmo. Às 5 eu acordo e faço check-out, ando pelas ruas ainda escuras e cheias de gente voltando de clubes e bebedeiras, apreensivo mas nem tanto. Algumas meninas me pedem informações sobre como ir a uma estação. tendo estudado o mapa do metrô de antemão (algo que de nada serviu mais tarde, mas foi bom tê-lo feito de qualquer maneira) eu aponto o caminho.

De volta ao aeroporto eu ainda tenho duas horas para meu voo. Descanso, me irrito, fico triste de ter sido tratado friamente por ela. Então sorrio por que eu fiz algo tão incrível e estive em um lugar tão maravilhoso.

Ainda rio quando escuto, nas minhas memórias, o jeito que eles falam. Não é o Gracias com som de ss, é mais como gráfffias, meio que com a língua nos dentes.

Amei. A cidade. E alguém.

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